sexta-feira, 29 de maio de 2009

A criança enjaulada

Ana já estava em trabalho de parto havia um bom tempo. A dor era muito forte e a parteira fazia uso de todas as suas possibilidades para amenizar o sofrimento e favorecer o nascimento da criança. Temos de admitir que as possibilidades da parteira eram bastante limitadas. Naquele momento, o que ela podia fazer era acalmar a gestante com palavras de estímulo e fazer algumas rezas para que uma intervenção divina auxiliasse aquela pobre mulher a parir seu filho. Era a o ano de 1946, na colônia de Porto Novo, época em que os partos eram extremamente difíceis: não havia hospitais próximos, médicos, enfermeiros e ferramentas, o que preponderava era a força da gestante, a habilidade da parteira e uma boa dose de sorte e de fé.
A dor que Ana sentia sugava todas suas forças. Seu suor já molhava os lençóis da cama do casal. A cama era ao mesmo tempo local de dormitório, de cura de enfermos e partos. Na maioria dos casos, na mesma casa as pessoas eram concebidas, nasciam, adoeciam e faleciam. Diferentemente de hoje, na época eram os objetos que viam as pessoas nascer e morrer.
O trabalho de parto já havia suprido todas as forças de Ana e as possibilidades da parteira. O marido Antônio acompanhava todo o processo apreensivo, já estava quase decidido a encilhar seu cavalo e cavalgar trinta quilômetros para buscar um médico.
Ana segurava em sua mãe a imagem da Virgem Maria, ela a aconchegava, dava força e proteção. Era preciso buscar mais forças para que o filho nascesse. Depois de um longo período de sofrimento, a criança acabou nascendo, mas o parto teve complicações, o que afetou a integridade física da criança. No momento de cortar o cordão umbilical da criança, Ana ficou assustada, estava em dúvida se ela sobriveviria sem ele. O sangue havia manchado toda a cama, mas estava no fim o sofrimento. Mal sabia a família de que aquela criança iria se tornar um filho enjaulado.
A criança por ter sofrido no momento do parto acabou desenvolvendo uma deficiência no cérebro que afetou a sua capacidade mental e causou danos na sua estrutura física. Na medida em que ela crescia, os pais da criança passavam a perceber que se tratava de uma criança anormal. Na época, muitas famílias entendiam que uma criança deste feitio era uma espécie de um castigo divino, ou até mesmo uma mensagem diabólica.
Ana e seu marido não entendiam o que haviam feito de errado para receber tal “maldição”. Será que Deus havia lhes imposto um castigo? Conforme a criança foi crescendo também foi aumentando o preconceito da família e da sociedade sobre ela. Com o tempo a família passou a entender que era vergonhoso ter uma criança deste feitio, e tomou uma decisão drástica: enjaular a criança. Escondê-la da sociedade, literalmente.
Ana sentia sinceramente em ter que fazer isso com seu filho, mas seu marido era quem tomava a decisão final. Ele acreditava que a criança havia nascido com estes problemas por culpa da esposa, e por isso, ela devia consentir em mantê-la enjaulada.
Acabaram prendendo a criança dentro de um quarto, da onde só podia sair em alguns momentos, principalmente na hora das refeições. Algumas vezes era retirada para ter contato com a luz solar, quando era amarrada a um pé de laranja, para que não fugisse. Jamais essa criança foi mostrada para a sociedade, e sempre alguém devia ficar em casa para cuidar dela enquanto que o restante da família freqüentava a missa ou as festas comunitárias. Uma vida isolada da sociedade, que jamais teve contato social, jamais aprendeu a ler e a escrever, jamais pôde sentir o gosto da vida.
A criança que nasceu com problemas físicos e mentais devido às complicações no parto era uma vergonha para a família. Era uma espécie de um castigo de Deus, e por isso devia ser mantida em cativeiro.
Parece uma história cruel, mas não é uma ficção. São histórias reais deste povo, que permanecem ocultas por vergonha, por culpa ou por omissão. Vidas podadas por crenças e valores morais preconceituosos.

2 comentários:

LUALUAR disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
LUALUAR disse...

Olá Professor Douglas.
Prazer em ler seu blog.
Conheço São João do Oeste. Tenho grandes amigos aí. O Sr. Rudi ( que foi prefeito entre 1999 e 2003 se nao me engano) e a sua esposa Traudi. Esta é irma de um grande amigo que faleceu em Manaus e foi enterrado em São João: O professor Lauro Thomé, filho do senhor Julio Thomé. Lauro foi Reitor da Universidade Federal do Amazonas.
Grande abraço.