Adaptado do livro Passado e Presente em Interfaces, de autoria de João Carlos Tedesco.
A memória é um
dos aspectos marcantes da condição humana. Certamente um dos fatores que nos
diferencia dos outros seres vivos é a capacidade que temos de memorizar o nosso
passado, seja ele individual ou coletivo. No livro de João Carlos Tedesco,
intitulado de “Passado e Presente em Interfaces”, o autor argumenta de que a
memória nos liga e nos vincula com os tempos, identifica e registra nossa
existência, transmigra conosco. Sem memória talvez não seríamos seres humanos,
pois a linguagem, os hábitos, a identidade e o grupo social com o qual
convivemos estão diretamente ligados a este condicionante.
Guardamos na
memória nossos costumes, nossos códigos de linguagem, lembramos que pertencemos
a uma comunidade e uma família, lembramos que temos um passado, uma trajetória
de vida. Para alimentarmos nossa memória criamos rituais para lembrarmos os
fatos do passado. Frequentamos museus, vemos fotografias e imagens, guardamos
objetos pessoais de valor sentimental, organizamos festas de família e
atividades culturais como os centros de tradição gaúcha e os grupos
folclóricos. A memória tem que ser alimentada constantemente para ficar presente
no nosso imaginário.
Mas a memória
precisa de dois fatores para se conservar: o ato de lembrar e o de esquecer. A
lembrança é a capacidade de efetivação da memória, ela nos alivia, pois é a
capacidade que temos para recuperar algo do passado. Sem a lembrança ficaria
impossível organizar nosso pensamento, pois teríamos que constantemente manter
vivo em nosso pensamento fatos do passado. A lembrança é um flash registrado na memória que aparece
com a ajuda de estímulos. Recentemente na rede social Facebook foi
compartilhada a imagem do livro infantil O Barquinho Amarelo, o que motivou
muitas pessoas a lembrar dos tempos de infância e de escola. Certamente muitos
não lembraram da história em si, mas ao ver a capa daquele livro veio à mente a
imagem da sua escola, da sua professora, dos seus colegas.
Da mesma
forma, o ato de esquecer é tão importante quanto o ato de lembrar. O que seria
de nós se não tivéssemos a capacidade de esquecer? Ficaríamos constantemente
remoendo feridas do passado, intrigas e desilusões. Lembrar e esquecer são
aspectos que se complementam e interagem na mente humana. Conforme João Tedesco,
“se há um conjunto de elementos intervenientes para o ato de lembrar, podemos
dizer o mesmo para o ato de esquecer.” Há coisas que queremos esquecer: mudamos
de cidade, trocamos de emprego, descartamos objetos, mas, no entanto, a
lembrança retorna sempre através de estímulos. O que faz uma pessoa tatuar o
nome do namorado (a) e apagar assim que o relacionamento termina? Existem
coisas que se quer conservar na memória e outras que se quer esquecer,
dependendo das circunstâncias sociais e temporais. O ato de esquecer possui uma
função social, há coisas que precisam ser esquecidas mesmo, para dar
continuidade à vida. O que faz uma pessoa cometer suicídio? Não seriam também
lembranças do passado que não podem ser esquecidas?
No âmbito
individual a condição da memória, da lembrança e do esquecimento são
determinantes controlados por cada indivíduo. Mas o que dizer da memória
coletiva? De que forma ela se sustenta? A memória coletiva está diretamente
vinculada a um jogo de interesses de grupos sociais interessados em manter
vivos determinados aspectos do passado. O que dizer dos arquivos da ditadura
militar? Dos arquivos secretos do Vaticano?
Necessariamente
a memória coletiva depende das lembranças individuais, é preciso consentir ou
não em esquecer ou cultivar algo, e nesse sentido o ressentimento é um grande
mobilizador coletivo. O que sustenta a memória dos argentinos em relação à
questão das Malvinas? O que alimenta a rivalidade entre Brasil e Argentina? Não
seria uma memória cultivada pelos meios de imprensa? O que faz com que pessoas
deixem de frequentar espaços sociais por ressentimentos do passado? O
ressentimento implica numa relação com o tempo e com a memória, sustentada
através do ódio, do rancor, da inveja.
Mário Quintana
foi feliz ao dizer certa vez de que o passado não reconhece seu lugar, ele está
sempre presente. O passado é eternizado através do ato de memorizar, de lembrar
e também de esquecer. As pessoas e as ideias desejam ser eternizadas e
lembradas e nesse sentido a transmissão é muito importante. Para João Tedesco é
um alívio para o ser humano poder se transcender, se exteriorizar, dizer quem
foi ou correlacionar sua existência a algo externo e de significação. Pioneiros
dizem: “eu participei da construção daquela obra”. A memória é uma espécie de
ruminante, mas que necessita de auxilio para ser estimulada, de recepção, de
apreensão de alguém para com outo alguém. Alguém precisa sentar e ouvir, ser o
receptor.
A
memória é seletiva, pois apagamos, marcamos, queremos esquecer, mas não
conseguimos. Somos alimentados por flashes
do passado: quando vemos uma pessoa, visitamos um lugar, achamos um objeto
esquecido numa gaveta. Na visão do professor João Tedesco, “os sentimentos de
memória podem ser muito profundos e intensos; desse modo, quanto mais
significativos, mais difíceis de serem apagados e não lembrados.”
Livro didático O Barquinho Amarelo, lembranças dos tempos de escola. |
Memorial pela passagem dos 30 anos da Guerra das Malvinas. Memória do povo argentino é alimentada através de rituais. |